Cada palavra um murro no estômago
Como descrever os poemas de Paulo César Fonteles de Lima? Que voz
é esta que aqui nos fala? Que gritos, que dores, que mortes
próximas? Que faço eu aqui, numa atmosfera cuidada e
harmónica, rodeada de estantes que albergam em muitas línguas
muitos poetas de muitos espaços e muitos tempos? Vínhamos ouvir
lírica uma voz que não conhecíamos, alguma
curiosidade nos trouxe.
Uma história simples, anos 70 no Brasil, um casal de estudantes, ambos
activos no meio universitário, cai nas garras de torcionários,
a fragilidade de uma jovem família nas mãos dos poderosos ou
dos que buscam o poder humilhando com atrocidades os que mantêm a todo
o custo coragem e dignidade.
E depois? De frente a um estrado, os dedos a crisparem-se rente ao estofo
do assento, recebo atónita flechas de revolta do sobrevivente à
tortura (no singular, que o plural iria minimizar o horror) dum regime
ditatorial, mas não sobrevivente à violência do regime
que lhe seguiu, pois que já em democracia (mas qual e quais as
falácias?) foi assassinado, a tiro, por um qualquer capanga de um
ou mais senhores da terra. No tempo da ditadura militar o poeta e sua mulher
grávida estiveram meses presos e sob tortura. A seguir, durante dez
anos, o poeta foi registando a sua experiência... Experiência?
Como as palavras são pobres e enganadoras. Não, Fonteles de
Lima não relata experiências horrorosas nos seus poemas, nem
lambe as suas feridas. Antes ele as reabre na nossa frente, rasga de novo
a pele, todo o seu corpo em carne viva. E expõe-se qual animal para
a degola, no corredor sombrio a caminho do matadouro.
Folheio o livro e deparo com o meu próprio pânico. Leio ora
em português ora em alemão, como se saltitar um pouco, comparar
original e tradução me aliviassem. Mas as palavras não
me apaziguam: é a matilha que ataca a mulher, são as
repetições que espancam: andar andar sem poder parar e o
gosto de morte na boca. Como fazer poesia depois de Ausschwitz, como
fazer poesia depois de meses violentados? Cada palavra é um murro
no estômago. Os poemas não se transcendem, não extravasam
sentimentos para um outro qualquer nível, mais suave ou conciliador.
Aqui, nada há a conciliar. Paulo Fonteles de Lima junta
emoções e palavras, cita os gestos e os berros da violência,
geme de novo a dor sofrida e não deixa nunca, em esperança
surda, de sonhar com um ataque de peões.
Por onde andaram estes poemas? Quem os ocultou? Quem não teve coragem
de os imprimir? Em que sistema eles não puderam ter voz? No mesmo
que assassinou o poeta?
Na Alemanha, em Hannover os poemas foram dramatizados, na leitura em Munique
lidos nas duas línguas, num tom lacónico, quase mecânico,
martelaram-me o cérebro pela noite adiante. Cada palavra é
um murro no estômago. São poemas que imagino lançados
em ritmo, em rap, ditos, repetidos, teriam de ser divulgados entre muitos,
não para fazer reviver um acontecimento passado, nem para rememorar
horas tristes de um (qualquer) país, não, eles terão
de ser ditos e ouvidos, porque tudo isto ainda acontece, porque neste momento,em
algum lugar sinistro do planeta, em terra danada, algures o corpo
trepida e há um sargento que ri.
Quis o destino que o investigador alemão Steven Uhly descobrisse a
obra de Fonteles de Lima. Coube-lhe a ele o dever e o gosto de traduzir os
poemas, de os publicar numa edição bilingue e de apresentar,
com informações preciosas, a época, as circunstâncias
e a vida do escritor. Também a cada leitor cabe o dever de divulgar
esta voz acutilante, que, afinal, regime nenhum conseguiu calar.
Luísa Costa Hölzl (Munique)
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